7 de abril de 2024

 


EM 1923, FLA RECORREU À JUSTIÇA CONTRA VASCAÍNO ANALFABETO

No primeiro “Clássico dos Milhões”, dia 29 de abril de 1923, na Rua Paysandu, Junqueira abriu o placar para o Flamengo, mas o Vasco virou com Cecy (2) e Arlindo, ganhando por 3x1. Isso em sua estreia na divisão principal e com um time de players pretos, pobres e analfabetos – proibidos no regulamento. O placar o manteve na liderava o Campeonato Carioca – proeza inaceitável para os que se julgavam a nata da sociedade. O Flamengo tentou anular o jogo na Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), sob a alegação de que o rival teria escalado um analfabeto, portanto, em condição irregular.

O Correio da Manhã tomou partido do clube da zona sul:

"Vai ser levantada hoje, no Conselho da Primeira Divisão, a questão da legalidade do registro do jogador do Vasco da Gama, João Baptista Soares, o Nicolino, que jogou contra o C.R. Flamengo. Segundo se diz, esse jogador não tinha o prazo de inscrição necessário, por isso que, tendo sido cancelado o seu registro por analfabetismo, requereu exame de suficiência, o qual provou saber ler. A data válida é a do exame de suficiência e, segundo ela, o Vasco não o podia ter incluído no team".  

Mesmo dominada pela dupla Fla-Flu, América e Botafogo, a liga deu ganho de causa ao Vasco, que não perdeu os dois pontos da vitória.

GRAMÁTICA

O tapetão da LMDT prejudicou o Vasco na segunda divisão.

Em 1920, o Carioca F.C. promoveu uma campanha na imprensa contra a escalação de Quintanilha e Esquerdinha, acusando-os de profissionais. A liga os excluiu, expondo a má vontade dos clubes da zona sul. Impedido de escalar os dois, o time perde por 2x0 e 2x1, se afastando do título. Antes, o Vasco 4x1 Carioca F.C., no turno, tinha sido anulado devido à escalação irregular de Leão.  

Em 1922, a LMDT recebeu denúncia de que o player Leitão era analfabeto e o convocou a escrever uma carta - diante dos cartolas. Era demais. A questão atravessou o Campeonato Carioca da segunda divisão. Ao fim, o Vasco perdeu os pontos do 8x3 no Carioca F.C. e isso lhe tirava o título.

Porém, Leitão enviou uma carta à liga solicitando outra prova, a fim de comprovar não ser analfabeto. A imprensa se posicionou a favor do Vasco. Um mês depois, a LMDT acatou o recurso, confirmando o título de campeão.

Para subir à primeira divisão de 1923, o campeão da segunda (Vasco) teria de vencer o último da primeira (São Cristóvão). Isso aconteceu e, outra vez, Leitão foi colocado na chapa. Os elitistas mal sabiam que ele tivera aulas de Língua Portuguesa e, diante dos inquisidores, fez sua inscrição em duas etapas: a ficha e o requerimento para jogar.

No livro O Negro do Futebol Brasileiro, Mario Filho revela: “A inscrição tornou-se um exame de primeiras letras. (...) nome, filiação, nacionalidade, naturalidade, dia em que nasceu, onde trabalhou”... Aulas particulares de Língua Portuguesa não bastavam: Leitão, Paschoal, Torterolli e Mingote tiveram de frequentar uma escola, na Rua da Quitanda.      

A elite não engolia o Vasco – seus pretos, mestiços e brancos pobres – e criou uma comissão de sindicância – Reis Carneiro, do Flu, Diocesano Gomes, do Fla e Armando de Paula Freitas, do América. Bastava provar que era analfabeto ou não trabalhava para o player ser excluído. Pelo regulamento, só estudantes podiam não trabalhar, ou seja, os filhos de boa família.

Artigo publicado na revista Sport retrata o sentimento dos rivais do Vasco, nas primeiras décadas do século XX:

“(...) Frequentamos uma academia, temos uma posição na sociedade, fazemos a barba no Salão Naval, jantamos no Rotisserie, visitamos as conferências literárias, vamos ao Five O’clock; mas quando nós resolvemos a praticar esporte às vezes somos obrigados a jogar com um operário, limador, mecânico, chofer e profissões que absolutamente não estão em relação ao meio onde vivemos. Nesse caso a prática torna-se um suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão”.

SUBVERSÃO

No segundo Clássico dos Milhões, em Laranjeiras, os torcedores (brancos) dos “grandes” se uniram na arquibancada contra o time indesejado. Um gol mal anulado pelo juiz Carlito Rocha, futuro presidente do Botafogo, decretou a derrota do Vasco por 3x2 para o Flamengo. O Fluminense, tendo na presidência do ricaço Arnaldo Guinle, cobrou dez mil contos de reis por supostos estragos cometidos por vascaínos no seu estádio.

Mario Filho, sobre a comemoração: “Depois do jogo, os torcedores do Flamengo (...) compram uma réplica de tamanco de 2,5m, levada no primeiro carro da comitiva de mais de cem automóveis. (...) Praia do Flamengo, Glória, Largo da Lapa, para jogar bombas no Bar Capela, Avenida Mem de Sá, Rua Evaristo na Veiga, Avenida Rio Branco, Rua Larga, Rua Visconde de Itaúna, Praça Onze, para jogar bombas da Cervejaria Vitória. (...)”.

O que aconteceu de nada teve de brincadeira, como destaca o geólogo Fernando Ferreira, ressaltando o caráter racista, elitista e xenófobo da carreata, na perseguição ao preto, ao pobre e ao português.

O fim da escravidão e do Império tinha pouco mais de três décadas. O racismo e a aversão aos portugueses ainda impregnavam a sociedade.

A estrutura montada pela elite – e para a elite - no foot-ball do então Distrito Federal também seria quebrada em 1926, pelo São Cristóvão, e em 1933, pelo Bangu, mas só o Vasco tornou-se “grande”.

As famílias, que da missa iam diretamente para o estádio de Laranjeiras, agora dividiam os espaços com os portugueses e seus empregados, pobres, o que era – e ainda é – o exemplo é a LICITAÇÃO DO MARACANÃ, com a tentativa de exclusão da torcida de perfil suburbano (popular) - uma subversão da hierarquia social.

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