VASCO x FLA-FLU: QUESTÃO DE BERÇO
A origem dos clubes – na virada entre o século
XIX e o século XX - que disputam a licitação do Maracanã (até 2044) explica a posição
de cada um: a proposta do ‘Consórcio Maracanã Para Todos’ – do Vasco e da WTorre
– é includente, popular; a do ‘Consórcio Fla-Flu’ elitizada, por contemplar os
coirmãos da zona sul e só. Os vascaínos, desde 2013 – quando o estádio passou a
ser gerido pelos rivais, na época, em parceria com a Odebrecht – são covardemente
discriminados.
Querem separar a população em
dois grupos.
Um com cidadania plena – os rubro-negros e
tricolores - pode frequentar o Maracanã - o palco mais simbólico do futebol. O outro, o da torcida do Vasco – mais popular e muito superior em
tamanho à torcida do Fluminense – é condenado a ser visitante em sua própria
casa porque os usurpadores não tratam o estádio como bem público.
IDENTIDADES
O
Flamengo é fundado a 17 de novembro de 1985. Logo, troca a “fundação oficial”
para 15 de novembro, junto ao feriado da Proclamação da República. As cores mudam, em 1896, de azul e ouro – tecidos difíceis de encontrar - para
preto e vermelho. O Vasco sempre foi de 21 de agosto de 1898. Na bandeira, o preto representa os mares nunca antes navegados, o fim
do mundo e as mortes no caminho. A faixa branca é a rota do navegador, e a cruz
a fé do povo português (o Flu imita o Fla: surge, em 1902, cinza e branco, e só
depois adota o tricolor).
FUNDAÇÃO
Em
1895 numa reunião de jovens da burguesia – estudavam e se divertiam – no Largo
do Machado, nasce o C.R. Flamengo, tendo como garagem um casarão na Praia do
Russel, 22 (Praia do Flamengo), área nobre, vizinho ao Palácio do Catete, a
residência do presidente da República. Um dos motivos é que, em 1894, o C.R.
Botafogo tinha sido fundado e seus remadores cortejavam as moças do bairro
Flamengo. Já o Vasco surge em 1898, em um sobrado alugado na Rua da Saúde, 127
(Gamboa), fundado por portugueses e descendentes, alguns donos de pequenos
comércios e a grande maioria de assalariados em lojas no Centro, zona norte e
subúrbios.
REALIDADES
Remadores
do Flamengo viviam da mesada dos pais e, às vezes, usavam o píer da presidência
da República para lançar os seus barcos na Baía de Guanabara. Já o primeiro
presidente do Vasco renunciou em 1899, levando quase todos os barcos para
fundar o C.R. Guanabara, em Botafogo.
Enquanto
nos clubes dos ricos da zona sul
não era admissível o convívio com pobres, no Vasco, eles formavam a maioria. A
elite também mantinha forte rejeição aos portugueses. Esses clubes faziam
questão de se apresentarem como
os que “reuniam os filhos das melhores famílias”, e cobravam altas
mensalidades. O Vasco, não. Daí os associados terem recusado a transferência da
sede para Botafogo, preferindo se reinventar na região portuária.
VASCO: ORIGEM
Nei
Lopes: “O Vasco nasceu no lugar e no momento em que se gestava o melhor da
cultura carioca, com sua música, sua dança e sua religiosidade. Morava perto
Hilário Jovino, o fundador do rancho carnavalesco, célula-mãe das escolas de
samba; os pais de santo João Alabá e Cipriano Abedé, a partir dos quais se
estabeleceram no Rio os candomblés da Bahia; Tia Perciliana, mãe de João da
Baiana, um dos pais da MPB. (...) a convivência entre europeus e descendentes
de africanos naquela região se deu sem maiores conflitos. Vem-nos daí a ideia
de que por isso que a Cruz-de-malta pulsou e pulsa no peito de tantos
sambistas, e a relação é enorme”.
FLA: ORIGEM
O
jornalista João do Rio, em 1916, escreveu a respeito da representatividade
social do rival: “Fazer sport há
vinte anos ainda era uma extravagância. (...) Rapaz sem um pince-nez, sem discutir literatura dos outros, sem cursar as
academias — era um estragado. E o Club de
Regatas do Flamengo foi o núcleo de onde irradiou a avassaladora paixão pelos sports”.
FLU:
ORIGEM
O Fluminense inaugura o foot-ball no Rio de Janeiro em 1902, dando ao esporte um perfil
elitizado. O fundador e primeiro presidente foi Oscar Cox, filho de
diplomata inglês, mas quem forjou a identidade tricolor foi o milionário
Arnaldo Guinle, o presidente de 1916 a 1931 e de 1941 a 1943. Também presidiu a
CBD de 1916 a 1920 e a AMEA em toda sua existência, entre 1924 e 1933. A
Família Guinle lucrava com o
Porto de Santos - era a dona do terreno do clube, do vizinho Palácio Guanabara
e muito mais.
PIONEIRISMO
A
partir dos clubes de remo nascem todos os outros. O pioneiro é o Grupo dos
Mareantes, de 1851. A prefeitura do Distrito Federal, em 1905, inaugurou um
pavilhão de ferro na Enseada de Botafogo, na recém-construída Avenida
Beira-Mar. Apogeu: inglês como o foot-ball
e acessível ao povo e à elite.
BOTA-ABAIXO
A
multimilionária Família Guinle se beneficiou da Reforma Passos adquirindo
terrenos antes ocupados por cortiços e casebres no Centro da cidade, conta
Darcy Ribeiro. Revolta popular. Um projeto de cidade perverso era gestado. A nova zona sul recebe as
melhorias que beneficiarão moradores dos palacetes de Laranjeiras, Flamengo e
Botafogo. À população pobre, restaram os bairros da zona norte e subúrbios. Os
clubes náuticos, como o Vasco, são despejados, e suas praias desaparecem
aterradas: do Russel, da Ajuda, de Santa Luzia, de Dom Manuel, do Peixe, da
Prainha, da Gamboa etc.
CARTOLA
O Vasco é o único dos “grandes” do Rio de Janeiro que já teve
um presidente preto: Cândido José de Araújo, o Candinho, em 1904, antes da
implantação do futebol, e 16 anos após a Abolição da Escravatura. O Fluminense
– e o coirmão, o Flamengo – jamais tiveram.
UNIDOS PARA SEMPRE
Por
não praticarem os mesmos esportes, até 1911 havia sócios de ambos os clubes (Fla-Flu). Em
1902, flamenguistas - inclusive o seu presidente - assinaram a ata de fundação
do Fluminense, na Rua Marquês de Abrantes, bairro Flamengo. De 1905 a 1906,
tiveram o mesmo presidente: o inglês Francis Henry Walter. O Flu repassou ao Fla o terreno do
Morro da Viúva, em 1935. O futebol rubro-negro nasceu na Rua Paysandu, terreno
da família Guinle, tricolor. Ou seja, flamenguistas ajudaram a
fundar o rival e tricolores criaram o futebol do Flamengo, capitaneados pelo
traidor Alberto Borgerth, remador do Fla e player
do Flu.
DEMOLIÇÕES
O
Flamengo tinha sede e garagem num casarão em área nobre (hoje, Praia do
Flamengo, 66) e sempre obteve favores públicos. O Vasco passou sufoco até a
inauguração de São Januário, em 1927. A sede pioneira era um barracão na Ilha
das Moças, na Gamboa. As primeiras sumiram: Ilha das Moças, aterrada; as
do Largo da Imperatriz e Travessa Maia, demolidas na construção do Palácio
Monroe. Por fim – com o estádio já de pé - a da Rua Santa Luzia caiu em 1942.
BACANAS
Sobre
as condições de mobilidade urbana em 1917, João do Rio explicou: “A gente de
Botafogo tem só de se dar com a gente de Botafogo [Laranjeiras\Flamengo] e a
gente do subúrbio com a gente do subúrbio. As estações de trem da Central do
Brasil têm contexto amplo, constatou Olavo Bilac, em A Notícia: “Cada uma tem o seu teatro, o seu parque, o seu
cinematógrafo e o seu club”.
TORCIDA RIVAL:
TEORIAS FAKE
A
torcida do Flamengo cresceu com a FlaPress, com o profissionalismo em meados da
década de 1930, pela visão de marketing do seu presidente Bastos Padilha. Antes,
não. Há teorias sobre a origem da popularidade que camuflam o DNA elitizado.
Ruy Castro: o rival já nasceu popular e a
rivalidade com o Vasco – “time dos portugueses” – no remo a alavancou. Ocorre
que o rubro-negro não tinha apelo popular e nem tampouco rivalidade com o Vasco
no remo, dada a imensa superioridade dos vascaínos. Outra teoria delirante é da
FlaPress, baseada em Mario Filho: os treinos na Rua Paysandu – área nobre -
eram franqueados e os players corriam
nas ruas... Ora, a torcida era a fina flor da sociedade, segundo A Gazeta de Notícias etc.
RACISMO INTIMIDA
Caso
emblemático é o de Carlos Alberto, que em 1914 trocou o América pelo Fluminense
(as maiores torcidas): num jogo em Campos Sales, ele passou tanto pó de arroz
que ficou quase cinza. Da geral, os rubros o acusaram de fazê-lo para
embranquecer a pele. Zombavam: “Pó de arroz! Pó de arroz!”. A acusação
alastrou-se como insulto até virar, muito depois, motivo de orgulho dos
tricolores, que reagiam chamando os americanos de “pó de mico” e os vascaínos — na década seguinte — de “pó da pérsia” (vermífugo). Carlos Alberto logo foi mandado
embora: justa causa. Mario Filho: “O Fluminense (...) queria ser mais do que os outros, mais
chique, mais elegante, mais aristocrático. O pó-de-arroz pegou feito visgo”.
TIME DOS MÉDICOS
Dos
onze titulares do Flamengo em 1914, nove estudavam Medicina, um Direito e outro
não estudava nada, mas era rico, do contrário não teria sido aceito no
Fluminense e nem estaria em meio aos atletas rubro-negros. O futebol refletia a
ordem social. Daí ser inconcebível a um pobre, semianalfabeto, competir
esportivamente – ou mesmo conviver - com um futuro doutor.
ESPÍRITO DO TEMPO
Em 1916, um artigo na
revista Sport retrata o sentimento
dos rivais do Vasco, nas primeiras décadas do século XX: “(...) Frequentamos
uma academia, temos uma posição na sociedade, fazemos a barba no Salão Naval,
jantamos no Rotisserie, visitamos as conferências literárias, vamos ao Five
O’clock; mas quando nós resolvemos a praticar esporte às vezes somos obrigados
a jogar com um operário, limador, mecânico, chofer e profissões que
absolutamente não estão em relação ao meio onde vivemos. Nesse caso a prática
torna-se um suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão”.
LEI HOUR CONCOURS
Até
meados da década de 1910, o futebol era aos sábados para não competir com as
regatas. Na era dourada, de 1989 a 1914, dos 17 campeonatos os clubes do Centro
levaram vantagem, com cinco títulos do Vasco (1905/06/12/13/14), quatro do
Natação e Regatas (1902/07/10/11), dois do Boqueirão (1901/03) e um do
Internacional (1909). O Gragoatá, de Niterói, ganhou quatro (1898/00/04/08) e o
Botafogo, da zona sul, um, em 1899.
Na
impossibilidade de serem campeões de remo, em 1915 Flamengo, Botafogo e
Guanabara aprovam, na FBSR, uma das leis mais antiesportivas do mundo, a “Lei
Hour Concours”, segundo a qual são excluídos da prova que decide o campeonato
(yole-8) quaisquer remadores com dois ou mais títulos. Só afetou os vitoriosos,
particularmente o Vasco, tricampeão.
GENTE FINA
No futebol, o Vasco
estreou na terceira divisão da LMSA (futura LMDT, LCF e, atualmente, é a FERJ) e
só chegou à primeira divisão em 1923. Diferente do Flamengo, que estreou no
futebol - quatro anos antes, em 1912 - na mesma LMSA, diretamente na primeira
divisão - graças à intervenção do poderoso (na época) coirmão Fluminense.
IMAGEM - berço do Fluminense