6 de abril de 2024


 VASCAÍNOS HERDARAM O PRECONCEITO CONTRA AS TORCIDAS DOS 'TIMES DE FÁBRICA'

Nas primeiras décadas do século XX, o foot-ball era coisa de bacana – o pioneiro é o Fluminense, de 1902 –, e os clubes fundados na zona sul (exceção ao América F.C.), pelos filhos da elite que emergia na recém-proclamada República, logo se organizaram para monopolizar o esporte. Os seus torcedores – brancos e de bons modos; a fina flor – se assustavam com os adeptos dos “times de fábrica”, vistos como desordeiros. A maioria desses times não resistiu à profissionalização (anos 30). A má fama das plateias rompeu o tempo, transfigurada para as torcidas dos “times de subúrbio” – eram várias; hoje, são os vascaínos.

O primeiro encontro entre players e torcedores dos “times da elite” e dos “times de fábrica”, no Bangu x Fluminense, pelo Campeonato Carioca de 1906, foi tão impactante que a recém-criada Liga Metropolitana de Foot-Ball (LMF) seria dissolvida para que surgisse no seu lugar a Associação Metropolitana de Sports Atléticos (LMSA). Regulamento: “A directoria da Liga resolveu, por unanimidade de votos, que não sejam registrados, como amadores, as PESSOAS DE CÔR. (...)” - 22 de maio de 1907.

Dos sete mil habitantes de Bangu, 1.417 batiam ponto na Companhia Progresso Industrial do Brasil. O Paiz: “torcem fervorosamente pelo time da casa”.

Em 1918, Bangu, Carioca F.C., Andarahy e Mavilis eram os “times de fábrica” (ou “operários”) com as torcidas mais vibrantes da cidade. Os jornais – não havia rádio, TV, e internet nem em delírio – as classificavam como “indisciplinados e agressivos batalhões”. Correio na Manhã: “O foot-bal ontem, no Andarahy, acabou em pao”. Às vezes, os fãs do Mavilis agrediam até os juízes. “Brigaram com torcedores do Confiança e do Engenho de Dentro”, contou O Imparcial.

Sobre as condições de mobilidade urbana, João do Rio explicou: “A gente de Botafogo tem só de se dar com a gente de Botafogo [Laranjeiras\Flamengo] e a gente do subúrbio com a gente do subúrbio. As estações de trem da Central do Brasil têm contexto amplo, constatou Olavo Bilac, em A Notícia: “Cada uma tem o seu teatro, o seu parque, o seu cinematógrafo e o seu club”.

A expressão “torcida organizada” nem existia, mas, entre 1917 e 1922, com o Vasco nas segunda e terceira divisões, o time era seguido pelo Grupo do lasca o pau. O português José Paradantas era o líder. O jornalista Álvaro do Nascimento conta, no Jornal dos Sports: “(...) com sol ou chuva, nos campos suburbanos, constituíam a policia de choque a dar garantia e segurança a ‘nossas’ representações (time e torcida)”.

Há noticias sobre a rivalidade entre torcedores do Vasco e do Vila Isabel na segunda divisão: o pau cantou em 1923, com direito a tiros. Os periódicos registravam brigas, como esta: um torcedor do América e outro do Fluminense tomavam caldo de cana, na Praça XI, quando um esfaqueou o outro.

Na revista teatral É da fuzarca, um exemplo do preconceito: “Futebol é um esporte que provoca sururu/ Eu sou lá da zona norte e torcida do Bangu”.

Antes do Flamengo 1x2 Vasco, na Rua Paysandu, em 1928, o Diário Carioca produziu um editorial, no qual escancarava o seu preconceito contra os players e a torcida vascaína, acusando-os de arruaceiros e que a força policial deveria proteger os rubro-negros:

 “(...) Quanto às desordens, que os adeptos do Vasco anunciaram, podemos asseverar aos nossos leitores que elas não se realizarão, por duas razões: a repressão severa, e porque conhecemos os jogadores do clube local, e sabemos de que espécie de gente se compõe o seu corpo de associados, que tem a educação suficiente para não se imiscuir com a torcida anonyma e apaixonada, como é a do Vasco da Gama”. 

Na década de 1930, a imagem do torcedor de clubes da zona norte como violentos é reforçada, e que os estádios da região eram perigosos - construída nos jornais e pelos torcedores dos clubes da zona sul, que, mesmo tendo estádios semelhantes (exceção do Flu e do Vasco), os chamavam de “galinheiros”.

Mario Filho: “Quem entrava em Figueira de Melo tinha de sair pelo corredor, os torcedores do São Cristóvão brandindo bengalas e pedaços de pau (...) os brancos dos outros clubes recebiam cachações na geral, na arquibancada, e no corredor de saída corria até o risco de levar uma navalhada”.

Em 1932, no Olaria x Flamengo, na Rua Bariri, um cartola flamenguista reclamou: “Pedi ao nosso diretor que mandasse guarnecer nosso arqueiro, pois os assistentes lhe arremessavam tudo: pedras, cascas de laranja, garrafas”. Mario Filho: “O time precisava levar seus torcedores, pois não tinha os locais. Cruzavam a cidade em caravana”. 

A elite sentia – e continua sentindo – pela torcida do Vasco – com sua base no subúrbio –  a raiva secular pelos pobres.  

Diário Carioca: “Botafogo e Vasco jogariam na Rua Figueira de Melo quando nos aspirantes (...) a torcida do Vasco (sempre a mesma), não se conformou ante uma decisão do árbitro, Sr. Bolivar Castro, do Fluminense, invadiu o campo e o agrediu (...) como só ela sabe fazer”.

Em 1947, em Teixeira de Castro, no Bonsucesso x Fluminense, a torcida local ficou tão irritada com as lambanças do juiz Alberto da Gama Malcher que perdeu o bom senso: um desvairado acertou um soco nele, que desmaiou e foi levado a um hospital para recompor o malar esquerdo.  

ATUALIZAÇÃO

A visão preconceituosa, manipuladora, em relação à torcida do Vasco atravessou as décadas e chega aos dias de hoje, estando presente na licitação do Maracanã.

Quem não é da zona sul não brinca no parquinho...

Os vascaínos foram os maiores prejudicados com a demolição do velho Maracanã, a construção e privatização da nova “arena”, em 2013, a as licitações – partes de um único projeto macabro: a destruição dos espaços públicos, com a exclusão das classes populares.


FOTO - Revista Careta, 1933.

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