7 de abril de 2024

RACISMO: O CENTENÁRIO DA RESPOSTA HISTÓRICA



Há um século, no dia 7 de abril de 1924, o presidente do Vasco, José Augusto Prestes, remeteu ao presidente da Liga Metropolitana de Sports Atheticos (AMEA) e do Fluminense, Arnaldo Guinle, uma carta – a Resposta Histórica – que rompeu a estrutura do foot-ball brasileiro. Através dela, o clube abria mão de participar do campeonato organizado pela liga dos “grandes”, com seus players e torcedores brancos. Isto porque se viu forçado a excluir 12 jogadores – a maioria de pobres e negros. Além do mais, os clubes da primeira divisão eram multiesportivos. O Vasco – campeão carioca de 1923! - só tinha o remo e deveria ser rebaixado, com Mangueira e Andarahy...

Em sua estreia na primeira divisão, em 1923, o Vasco conquistou o título com jogadores das classes populares. Não foi o primeiro a ter pobres ou pretos, mas foi o primeiro a esmagar os que se julgavam a fina flor da sociedade.

Naqueles tempos de racismo e xenofobia na capital da República – exacerbados, após os festejos pelo Centenário da Independência do Brasil (1922) - a proeza dos Camisas Negras foi tão marcante quanto a do preto Jack Johnson nocauteando o branco Tommy Burns, em 1908. Antes, o boxe era segregado no Estados Unidos. Ou a de Jessé Owens calando o Estádio Olímpico de Berlim, repleto de nazistas, em 1936.

Enquanto se derrubava um símbolo da cidade – o Morro do Castelo – pobre, luso-africana, para dar lugar ao “futuro”, surgia um time de foot-ball – o sport da modernidade – exatamente com a imagem que a elite pretendia sepultar... O Vasco expressava o triunfo da associação trem-subúrbio-pobre sobre carro importado-zona sul- vida moderna.

O regulamento da AMEA, criada por Flamengo, Fluminense e outros, não escancarava a proibição aos players de cor preta, mas incluía artigos que inviabilizavam a presença deles: vivia-se o amadorismo e os times deveriam ser formados por estudantes ou trabalhadores alfabetizados que não exercessem profissão “subalterna” (marinheiro, estivador, barbeiro, garçom etc.) ou passível de receber gorjetas. 

A Resposta Histórica se transformou em marca do Vasco, eternizando-o como defensor dos valores democráticos, da inclusão social e contra o racismo. Como observa o geógrafo Leandro Fontes, tornou público, com rara precisão e originalidade, a natureza antagônica do Vasco e dos fundadores da AMEA.

O Vasco forçou a integração dos desportistas negros e operários, algo inconcebível para os rivais naquela época. Exemplo disso foi a eleição para presidente, em 1904, do funcionário da Central do Brasil, Candido José de Araújo - o primeiro presidente negro entre os “grandes”. 

ANTECEDENTES

A Liga Metropolitana de Football (LMF) promoveu o primeiro Campeonato Carioca, em 1906. O presidente da LMF era Francis Henry Walter, um inglês ricaço, dono da firma de comércio exterior Walter Brothers & Company. Presidente do Fluminense de 1903 até 1908, ele também foi sócio, atleta e presidente do Flamengo, em 1905-1906, tendo sido, portanto, o mandatário dos coirmãos Fla-Flu ao mesmo tempo.

O glamour não resistiu a Bangu. Dos sete mil habitantes, 1.417 do bairro da zona norte batiam ponto na Companhia Progresso Industrial do Brasil. O Paiz: “torcem fervorosamente”. Surpresos com a recepção que tiveram, os “grandes” desistiram da LMF para fundar a Liga Metropolitana de Sports Atléticos (LMSA), presidida, é claro, por Francis Henry Walter.

Regulamento: “A directoria da Liga resolveu, por unanimidade de votos, que não sejam registrados, como amadores, as PESSOAS DE CÔR. (...)” - 22 de maio de 1907. 

REGATAS

Sob a influência de Botafogo, Flamengo e Guanabara, a Federação Brasileira das Sociedades do Remo (FBSR) resolveu pressionar o Vasco a partir de 1904.

Com as guarnições vascaínas formadas por imigrantes portugueses e brasileiros pobres, empregados no comércio, a FBSR tentou proibir - sem sucesso, devido à intervenção do Vasco -, que os remadores trabalhassem em hotéis, botequins, cafés, quiosques, armazéns de secos e molhados, cervejarias, confeitarias, charutarias, bilhares, casas de leite, sorvetes e bebidas, casas de barbeiro e cabeleireiro, agências de locação de criados ou bilhetes de loterias etc.

Até meados da década de 1910, o futebol era aos sábados para não competir com as regatas. 

Na era dourada do remo, de 1989 a 1914, dos 17 campeonatos os clubes do Centro levaram vantagem, com cinco títulos do Vasco (1905/06/12/13/14), quatro do Natação e Regatas (1902/07/10/11), dois do Boqueirão (1901/03) e um do Internacional (1909). O Gragoatá, de Niterói, ganhou quatro (1898/00/04/08) e o Botafogo, da zona sul, um, em 1899.

Em 1914, alegando que Claudionor Provenzano não era amador, a FBSR o elimina, mas o Vasco reverte a decisão. Claudionor não tinha a boa vida dos remadores dos rivais e recebia ajuda de custo. No fundo, uma reação da elite – no ano seguinte, é baixada uma das leis mais antiesportivas do mundo, a “Lei Hour Concours”, segundo a qual são excluídos da prova que decide o campeonato (yole-8) quaisquer remadores com dois ou mais títulos. Só afetou os vitoriosos: naturalmente o Vasco, tricampeão.

ENTRELINHAS

A LMF foi dissolvida no final de 1907, por questões esportivas envolvendo Fluminense e Botafogo, mas quase nada mudou com a inauguração da Liga Metropolitana de Sports Atheticos (LMSA): players de cor preta e brancos pobres continuavam preteridos. As invés de proibirem de forma direta, os passam a se utilizar dos estatutos, graças a regras que davam margem para interpretações de uma comissão de sindicância.

Em 1917, a LMSA vira Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT) e o estatuto apresenta uma novidade para ajudar o trabalho da comissão de sindicância: o analfabetismo torna-se um quesito para impedir a entrada ou excluir jogadores. No início do século XX, a maior parte da população brasileira era analfabeta, especialmente os de pele preta.

PRIMEIROS CHUTES

O Vasco institui o seu departamento de futebol em 1916. Estreia na terceira divisão da LMSA e só chega à primeira divisão em 1923. Diferente do Flamengo, que estreou - quatro anos antes, em 1912 - na mesma LMSA, diretamente na primeira divisão - graças à intervenção do poderoso (na época) Fluminense.

Enquanto a principal liga – a LMDT - era controlada pelos “grandes”, havia outras, como a Associação Athletica Suburbana e a Liga Suburbana de Football. Jogos no campo do Jardim Botânico reuniam multidões. Foi neste celeiro que o Vasco montou o seu time – o critério de escolha era ser bom de bola, seja qual fosse a cor, a etnia ou a condição financeira.

Inclusão social que acontecia desde sempre, no remo.

O Vasco da Rua Santa Luzia abria suas portas aos jogadores dos clubes pequenos e agremiações dos subúrbios, e, a cada ano, os Camisas Negras se qualificavam. Em 1921, o clube alugou o campo da Rua Morais e Silva, na Tijuca, ao Sport Club Rio de Janeiro, para treinos e jogos.

SEGUNDA DIVISÃO

O ano de 1922 marcou o Centenário da Independência do Brasil, tempo em que a intelectualidade e mesmo o Estado pregavam a teoria racial do embranquecimento da sociedade. Crescia o preconceito contra imigrantes portugueses - em sua maioria, pobres e de baixa instrução: os vascaínos... Foi neste cenário que o Vasco – com um time repleto de players negros e pobres – conquistou o título carioca da segunda divisão.

Para subir à primeira divisão, o campeão da segunda (Vasco) teria de vencer o último da primeira (São Cristóvão). A 5 de novembro de 1922, o jogo ficou no 0x0, o que provocava a realização de um tira-teima.

Uma questão atravessou o campeonato: a LMDT recebera denúncia de que Leitão, do Vasco, era analfabeto e sua inscrição estaria irregular. Ele foi convocado a escrever uma carta - diante dos cartolas. Ao fim, o Vasco perdeu os pontos do 8x3 no Carioca F.C. e isso lhe tirava o título.

Leitão enviou uma carta à liga solicitando outra prova, a fim de comprovar não ser analfabeto. Os elitistas mal sabiam que o player tivera aulas de Língua Portuguesa. A imprensa se posicionou a favor do Vasco.

Depois de muita briga, a LMDT resolve não organizar o jogo-desempate, decreta o América campeão do Rio de Janeiro, não rebaixa o São Cristóvão e o Vasco obtém o acesso à primeira divisão.

ALFABETIZAÇÃO

Logo em sua estreia na primeira  divisão, o Vasco conquista o título de campeão carioca de 1923. Em campo, com uma campanha avassaladora. Fora de campo, graças ao associado Custódio Moura. Bibliotecário do clube, ele  ensinava, de graça, os jogadores a ler e a escrever. A LMDT perseguia os vascaínos por causa do analfabetismo e seus cartolas frustraram-se quando os players, mesmo que sem boa ortografia, escreveram os dados solicitados e o pedido de inscrição.

No primeiro Clássico dos Milhões, Vasco 3x1, de virada, na Rua Paysandu, o Flamengo tentou - sem sucesso - anular o jogo na LMDT sob a alegação de que o rival teria escalado um analfabeto, em condição irregular. 

O Correio da Manhã toma partido do time da zona sul:

"Vai ser levantada hoje, no Conselho da Primeira Divisão, a questão da legalidade do registro do jogador do Vasco da Gama, João Baptista Soares, o Nicolino, que jogou contra o C.R. Flamengo. Segundo se diz, esse jogador não tinha o prazo de inscrição necessário, por isso que, tendo sido cancelado o seu registro por analfabetismo, requereu exame de suficiência, o qual provou saber ler. A data válida é a do exame de suficiência e, segundo ela, o Vasco não o podia ter incluído no team".  

REVOLTA DAS ELITES

Após a conquista do título de 1923 pelos Camisas Negras, os clubes da elite rompem com a LMDT e criam a Associação Metropolitana de Esportes Atheticos (AMEA), cuja comissão organizadora trabalhava na sede do Fluminense. Fundadores: América, Botafogo, Flamengo, Fluminense e o Bangu. O Vasco, então o campeão, com a maior torcida – e as maiores rendas – foi sumariamente excluído.

A comissão na AMEA se reuniu a 30 de março de 1924 e decidiu solicitar que o Vasco excluísse 12 de seus jogadores. O objetivo era impedi-lo de ser campeão com jogadores das camadas populares. O presidente do Vasco, José Augusto Prestes, ainda participou de uma reunião com a comissão organizadora, em uma última tentativa para dissolver o impasse.

Deu errado. No dia seguinte, a AMEA fez publicar nos jornais as resoluções que colocavam o Vasco em desvantagem. Queriam-no sem os pretos e pobres, em posição secundária. A 7 de abril de 1924, com o apoio unânime da diretoria,  José Augusto Prestes assinou o Ofício n.º 261 - a “Resposta Histórica”.

O Clube desistia de fazer parte da AMEA e ficaria com seus jogadores.

SÃO JANUÁRIO

Vasco e Flamengo já tinham seus terrenos – um comprado (665.895 contos de réis por 65.445m quadrados, em São Cristóvão); o outro, invadido. A alegação de que o Vasco não estava à altura dos “grandes” por não ter um estádio levou os vascaínos a inaugurarem São Januário, em 1926, o maior da América do Sul (até 1930), do Brasil (até 1939) e do Rio (até 1950).

Definitivamente, o clube mudava de endereço, do Centro da cidade para a zona norte. 

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